Devo muito a Eça de Queirós. Os Maias foram o primeiro clássico que li. Foi este livro que despertou o meu afincado interesse pelos clássicos da literatura. Sempre mantive a aclamada obra-prima de Eça como aquela que me era mais cara, entre a sua produção. Contudo, é com espanto que afirmo que A Ilustre Casa de Ramires conseguiu ultrapassar, embora não o significado, pelo menos o deleite que Os Maias me proporcionaram. Apesar do carácter monumental e de fina caricatura de toda a sociedade portuguesa que esta última contém, elevando Eça ao patamar de um Victor Hugo, de um Zola (aliás, seus contemporâneos e influências literárias), a Casa de Ramires é o cúmulo da maturidade literária queirosiana.
Estamos perante a vida de Gonçalo Mendes Ramires, último varão da propalada mais antiga família nobre portuguesa, anterior ao reino e à casa real, que sofre de um terrível mal: o medo, físico, que o faz fugir a sete pés à mínima ameaça, psicológico, duvidando de si próprio e das suas capacidades numa insegurança perpétua. Toda a narrativa irá desenvolver-se em torno deste tema numa tentativa complexa da sua resolução.
Porque se sente
inferior, pejado de motejos e indiferentismo, Gonçalo não se restringe à figura
de rico proprietário, recém-licenciado vivendo pacatamente das suas rendas,
quer brilhar, subir a escala social para elevar bem alto a sua despeitada
pessoa. O seu meio, entrar na política, fazer-se deputado como rampa de
lançamento para voos mais altos. Neste sentido, aceita o convite de um colega
da universidade para escrever uma novela histórica, na senda de Herculano,
adaptado ao realismo, “A Torre de D. Ramires”. Vasculhando os anais da família,
desencanta um seu avô, Tructesindo, que representa a sólida força que almeja
possuir. A novela, além de elegíaca, tem como intuito torná-lo conhecido da
opinião pública com vista à recolha de prováveis dividendos políticos. Após a
morte de Sanches Lucena, deputado pela localidade, vê aí a sua oportunidade.
Reata a amizade quebrada, devido a juras de amor defraudadas para com a sua
irmã Graça, com André Cavaleiro, governador civil de Oliveira, e recebe, sob o
preço aviltante de alcovitar irreflectidamente o reacender do romance adúltero
do último com a mana Ramires, o apoio do partido no governo à sua candidatura a
deputado. Como consolidar da sua posição pública, ou, talvez, como alternativa
ao apoio do “amigo” Cavaleiro, tenta o casamento com a rica viúva Lucena apenas
para descobrir que é, de longa data, amante de um seu amigo próximo.
Todavia, eis que
tudo se altera, quando Gonçalo, perdido na estrada, a caminho de uma visita de
angariação de apoio político, se vê, uma vez mais, humilhado, desta feita com
laivos de agressão física, por um conhecido rufia da região. É o quebrar das
cordas de fino medo que o tolhiam, quebrantavam, havia tantos anos. Finca o pé,
defende-se, repele o ataque, e recupera a sua virilidade, alcança a completude
por que tanto almejara. É já um homem novo, um digno herdeiro de Ramires, e
todo o seu despeito e flagrante sentimento de inferioridade se esvaem. Ganha a
eleição, não obstante, já não pode desfrutar daquilo a que tudo sacrificou – esforço
literário, honra, a sua e a da irmã, a vida simples, mas independente – porque
já não persiste o seu instigador, o desejo de compensar as patentes fraquezas
com o reconhecimento público. Parte para África, num assomo de desejada
liberdade criadora, e funda um império comercial com base em produtos
coloniais, consubstancia a sua essência de Ramires, concretizando o sonho
português de finais de oitocentos, o sucesso da expansão colonial africana.
A
Ilustre Casa de Ramires está para Eça de Queirós como A Educação Sentimental está para Flaubert.
Após o sucesso estrondoso de Madame
Bovary, Flaubert afirma ”Emma Bovary sou eu”, num rasgo de liberdade
criativa, não queria ficar preso a esse sucesso inicial. É neste sentido que
surge a tardia e, provavelmente menos conhecida, mas superior, Educação Sentimental. Assim, depois de Os Maias, a obra que sempre estará
ligada à sua posteridade, Eça não se fina nesses louros e ultrapassa-se a si
mesmo, cria a Casa de Ramires. Com uma estrutura ainda perceptivelmente
realista, extravasa os seus limites formais e apresenta-nos algo
inesperadamente novo, mais leve, mais optimista. Gonçalo Mendes Ramires já não
é o hedonista falhado Carlos Eduardo da Maia. Graça Ramires não é a sublime
destroçada Maria Eduarda da Maia. Padre Soeiro, administrador dos Ramires, não
é já o sórdido criminoso Padre Amaro. Caíram os rótulos e os personagens
tipificados, tudo é mais humano. A
Ilustre Casa de Ramires representa, em suma, a reconciliação de Eça de
Queirós com Portugal, através do seu personagem principal, Gonçalo, que, no
final do romance, é textualmente identificado com esse mesmo Portugal.
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