quarta-feira, 2 de maio de 2018

"A Ilustre Casa de Ramires" de Eça de Queirós


Devo muito a Eça de Queirós. Os Maias foram o primeiro clássico que li. Foi este livro que despertou o meu afincado interesse pelos clássicos da literatura. Sempre mantive a aclamada obra-prima de Eça como aquela que me era mais cara, entre a sua produção. Contudo, é com espanto que afirmo que A Ilustre Casa de Ramires conseguiu ultrapassar, embora não o significado, pelo menos o deleite que Os Maias me proporcionaram. Apesar do carácter monumental e de fina caricatura de toda a sociedade portuguesa que esta última contém, elevando Eça ao patamar de um Victor Hugo, de um Zola (aliás, seus contemporâneos e influências literárias), a Casa de Ramires é o cúmulo da maturidade literária queirosiana.
 
Eça de Queirós, falecido no mesmo ano da publicação de  
A Ilustre Casa de Ramires (1900)

Estamos perante a vida de Gonçalo Mendes Ramires, último varão da propalada mais antiga família nobre portuguesa, anterior ao reino e à casa real, que sofre de um terrível mal: o medo, físico, que o faz fugir a sete pés à mínima ameaça, psicológico, duvidando de si próprio e das suas capacidades numa insegurança perpétua. Toda a narrativa irá desenvolver-se em torno deste tema numa tentativa complexa da sua resolução.

Porque se sente inferior, pejado de motejos e indiferentismo, Gonçalo não se restringe à figura de rico proprietário, recém-licenciado vivendo pacatamente das suas rendas, quer brilhar, subir a escala social para elevar bem alto a sua despeitada pessoa. O seu meio, entrar na política, fazer-se deputado como rampa de lançamento para voos mais altos. Neste sentido, aceita o convite de um colega da universidade para escrever uma novela histórica, na senda de Herculano, adaptado ao realismo, “A Torre de D. Ramires”. Vasculhando os anais da família, desencanta um seu avô, Tructesindo, que representa a sólida força que almeja possuir. A novela, além de elegíaca, tem como intuito torná-lo conhecido da opinião pública com vista à recolha de prováveis dividendos políticos. Após a morte de Sanches Lucena, deputado pela localidade, vê aí a sua oportunidade. Reata a amizade quebrada, devido a juras de amor defraudadas para com a sua irmã Graça, com André Cavaleiro, governador civil de Oliveira, e recebe, sob o preço aviltante de alcovitar irreflectidamente o reacender do romance adúltero do último com a mana Ramires, o apoio do partido no governo à sua candidatura a deputado. Como consolidar da sua posição pública, ou, talvez, como alternativa ao apoio do “amigo” Cavaleiro, tenta o casamento com a rica viúva Lucena apenas para descobrir que é, de longa data, amante de um seu amigo próximo.

Solar da Torre da Lagariça, inspiração para a Casa de Ramires

Todavia, eis que tudo se altera, quando Gonçalo, perdido na estrada, a caminho de uma visita de angariação de apoio político, se vê, uma vez mais, humilhado, desta feita com laivos de agressão física, por um conhecido rufia da região. É o quebrar das cordas de fino medo que o tolhiam, quebrantavam, havia tantos anos. Finca o pé, defende-se, repele o ataque, e recupera a sua virilidade, alcança a completude por que tanto almejara. É já um homem novo, um digno herdeiro de Ramires, e todo o seu despeito e flagrante sentimento de inferioridade se esvaem. Ganha a eleição, não obstante, já não pode desfrutar daquilo a que tudo sacrificou – esforço literário, honra, a sua e a da irmã, a vida simples, mas independente – porque já não persiste o seu instigador, o desejo de compensar as patentes fraquezas com o reconhecimento público. Parte para África, num assomo de desejada liberdade criadora, e funda um império comercial com base em produtos coloniais, consubstancia a sua essência de Ramires, concretizando o sonho português de finais de oitocentos, o sucesso da expansão colonial africana.

Gustave Flaubert (1821-1880)

A Ilustre Casa de Ramires está para Eça de Queirós como A Educação Sentimental está para Flaubert. Após o sucesso estrondoso de Madame Bovary, Flaubert afirma ”Emma Bovary sou eu”, num rasgo de liberdade criativa, não queria ficar preso a esse sucesso inicial. É neste sentido que surge a tardia e, provavelmente menos conhecida, mas superior, Educação Sentimental. Assim, depois de Os Maias, a obra que sempre estará ligada à sua posteridade, Eça não se fina nesses louros e ultrapassa-se a si mesmo, cria a Casa de Ramires. Com uma estrutura ainda perceptivelmente realista, extravasa os seus limites formais e apresenta-nos algo inesperadamente novo, mais leve, mais optimista. Gonçalo Mendes Ramires já não é o hedonista falhado Carlos Eduardo da Maia. Graça Ramires não é a sublime destroçada Maria Eduarda da Maia. Padre Soeiro, administrador dos Ramires, não é já o sórdido criminoso Padre Amaro. Caíram os rótulos e os personagens tipificados, tudo é mais humano. A Ilustre Casa de Ramires representa, em suma, a reconciliação de Eça de Queirós com Portugal, através do seu personagem principal, Gonçalo, que, no final do romance, é textualmente identificado com esse mesmo Portugal.

Sem comentários:

Enviar um comentário